Bíblia e teólogos contra a reserva fracionária ou o depósito irregular e, portanto, contra seus fiadores modernos (banco central e instituições análogas)

 Do site Economia Escolástica Católica

A reserva fracionária ou, como se conhecia na antiguidade, o “depósito irregular”, trata-se de um contrato, verbal ou escrito, onde o custodiante do dinheiro depositado passa a emprestar uma parte desse mesmo depósito sem prévio consentimento de quem deixou depositado.

O depósito irregular se dá hoje predominantemente via constrangimento popular assentido por medo de desbancarização, o que aliena o cidadão das transações financeiras com a sociedade majoritariamente bancarizada, além de deixa-lo à mercê da inflação.

A reserva fracionária é o contrato de depósito irregular como se conhecia no direito romano em nova roupagem, isto é, legalizado, em uso mediante regras específicas da autoridade monetária nacional, etc. É comprovado matematicamente, até mesmo pelos defensores de sua existência, que a reserva fracionária causa inflação, logo, saber a doutrina católica contra a mutação monetária artificial não-emergencial é pré-requisito para entender os argumentos aqui.

Este artigo pretende unicamente criticar uma determinada função adquirida pelo Banco Central, ou autoridade monetária análoga, no século XX, e principalmente no ocidente: fiadora da reserva fracionária. Ou seja, põe-se de lado toda outra incumbência que a autoridade monetária nacional possa possuir.

- Sumário

Sagrada Escritura
Teólogos
Conclusão
Objeções à conclusão

- Sagrada Escritura

Episódio evangélico da expulsão dos banqueiros do templo

Na concordância dos Santos Evangelhos do então Cônego Leopoldo e Silva (1903), lemos como Nosso Senhor Jesus Cristo duas vezes expulsou os “banqueiros”: uma ao início de sua vida pública com um chicote que fez (S. João II, 13-25), e outra na semana santa virando a mesa dos banqueiros e acusando estes e outros de fazerem a “casa de oração” um “covil de ladrões” (S. Mateus XXI, 12-17, S. Marcos XI, 15-19, S. Lucas XIX, 47-48). 

Diz o professor Huerta de Soto que tais textos confirmam que o templo de Jerusalém (por mimetismo o maligno também sugestionava as mesmas práticas nos templos pagãos da antiguidade), “funcionava como um verdadeiro banco público, que recebia depósitos de hebreus ricos e pobres. A admoestação de Jesus Cristo poderia ser entendida como um protesto contra os abusos advindos de uma prática ilegítima (abusos consistentes, como já sabemos, no uso do dinheiro que lhes era depositado para custódia). Além disso, as passagens bíblicas ilustram muito bem a simbiose que já na altura havia entre o sistema bancário e a autoridade pública pois tanto os sumos sacerdotes como os escribas ficaram indignados com o comportamento de Jesus” [1].

"Aquele que oferece um sacrifício arrancado do dinheiro dos pobres é como o que degola o filho aos olhos do pai. O pão dos indigentes é a vida dos pobres; aquele que o tira é um homicida. Quem tira de um homem o pão de seu trabalho é como o assassino do seu próximo. O que derrama o sangue e o que usa de fraude no pagamento de um operário são irmãos." Eclo XXXIV, 24-27. Trecho sagrado que prova como não pagar o salário a quem trabalha é um dos pecados que clama aos céus e brada a Deus por vingança. Geralmente a inflação faz com que não se possa pagar o valor certo a quem trabalhou.

"A balança fraudulenta é abominada pelo Senhor." Provérbios XI, 1. A balança é fraudulenta se o valor do dinheiro é constantemente modificado, do qual o poder estatal deve ser guardião, pois “dai a César o que é de César”.

- Teólogos

Aviso: os trabalhos dos escolásticos tardios espanhóis estão disponíveis online para consulta, porém infelizmente se vê uma linguagem muito difícil de compreender, mesmo para um entendido da língua castelhana. Assim, é preferível se referir ao resumo feito por Jesús Huerta de Soto com suas citações [2].
Pe. Saravia de la Calle (século XVI)

Em sua “Instrucción de mercaderes” (Instrução aos comerciantes, 1544) duramente denuncia os banqueiros prestamistas do depósito alheio, por ele rotulados de “glutões vorazes, que comem tudo, destroem tudo, confundem tudo, roubam e mancham tudo, como as harpias de Pineu” [3]. E destes inclusive diz que “vão para a rua e para a praça com mesa e cadeira e caixa e livro, como as rameiras vão para o bordel com a cadeira”. De la Calle inclusive ironiza os crédulos naquela atividade bancária desta forma: 

“Acreditas que o banqueiro provavelmente guardará aquele dinheiro do depósito e não lucrará com ele; mas esta probabilidade não se pode ter de nenhum destes aproveitadores. Pelo contrário, o banqueiro há-de investi-lo e tentar lucrar com ele, porque como seria possível pagar 7 e 10 por cento de juros àqueles que lhe fornecem o dinheiro, se não o usasse?” [4].

Pe. Martín de Azpilcueta C.R.S.A. (1493-1586)

Era primo, pela família Azpilcueta, de S. Francisco Xavier:

Para ele, paga-se “para compensar o trabalho e o cuidado que o cambista tem de receber e guardar o dinheiro” [5], ou seja, são os depositantes que deviam pagar ao banqueiro, e não o inverso. Seguindo o mesmo raciocínio de Saravia de la Calle, condena expressamente aqueles clientes que pretendem não pagar pela custódia do depósito, e ainda auferir juros.

Pe. Tomás de Mercado, O.P. (1523-1575)

Em 1571, além de sustentar similar defesa aos juristas antes citados em relação à necessidade de pagamento do cliente ao depositante, também usa uma “juridiquês ironia” contra os banqueiros, tão “generosos” que não cobram nada pela custódia dos depósitos: “os desta cidade, é certo, são realíssimos e afidalgados, pois não pedem nem recebem nenhum salário”.

Ademais, De Mercado parece ter sido (JHS, P.108), o mais fiel à tradição jurídica romana acerca do depósito irregular: “hão de entender [os banqueiros] que a moeda não é sua, mas alheia, e não é justo que, por se servirem dela, deixem de servir o seu dono” [6]. Adicionalmente às análises jurídicas, agrega Tomás de Mercado recomendações morais: “mas como quando se ganha comodamente é muito difícil refrear a ganância, nenhum deles ouve estes avisos ou age de acordo com estas condições”. Nota Huerta de Soto como isto levou Tomás de Mercado a aplaudir a promulgação do imperador D. Carlos impedindo os banqueiros de fazerem negócios particulares, com o objetivo de eliminar a tentação de financiá-los com o dinheiro obtido dos depositantes [7].

Pe. Bernard W. Dempsey, S.J. (1903-1960) citando Pio XII e Leão XIII no contexto de ataque ao elemento de usura na inflação e, por conseguinte, no que a reserva fracionária causa

“Mesmo quando as pessoas não entendem o processo [finanças públicas], elas têm o sentimento de alguma coisa está errada, e buscam se defender contra ela” [8]: 

[Citação de Pio XII para ilustrar a afirmação]: “Tal estado de coisas influi mais infelizmente nas mentalidades dos indivíduos. O indivíduo vem a ter cada vez menos compreensão dos assuntos financeiros do Estado. Mesmo na mais sábia política ele suspeita sempre de alguma força misteriosa, algum motivo escondido e malicioso que ele deve prudentemente desconfiar e se proteger. Eis aí, brevemente, onde se deve definitivamente buscar a causa profunda da decadência da consciência moral de todas as pessoas — de todas as classes — em matéria de finanças públicas e principalmente em matéria fiscal” (Aux participants au congrès de l'Institut international des finances publiques. Acesso em: 3 de dezembro de 2021. Link: https://www.vatican.va/content/pius-xii/fr/speeches/1948/documents/hf_p-xii_spe_19481002_istituto-finanze-pubbliche.html. Dia 2 de outubro de 1948).

“Um esboço essencial da doutrina da Igreja sobre a usura é o seguinte.

A usura é o ganho proveniente de um empréstimo de mutuum. Mutuum é um contrato relativo ao empréstimo de um objeto em condições tais que o título da coisa emprestada passa para o mutuário. Este fato é apontado como a origem histórica do nome do empréstimo - mutuum é uma corrupção de meum e tuum, meu e teu. Assim, mutuum é uma transacção de empréstimo em que o que é meu passa a ser teu, apesar de ser um empréstimo. Os casos óbvios em que o título deve ser transferido para o mutuário são aqueles em que os objetos devem ser consumidos na sua utilização.

Para utilizar os exemplos tradicionais dos moralistas, aquele que pede emprestado um pão ou uma garrafa de vinho não pode obviamente devolver a coisa emprestada, ou a transação de empréstimo seria inútil.

Aqui está a origem da ideia de que a proibição da Igreja relativamente à usura tem algo a ver com os empréstimos de bens de consumo. Os bens de consumo são apenas os exemplos mais simples e óbvios de bens fungíveis. Os bens fungíveis são aqueles que podem fungivice alterius, ou seja, em que uma unidade pode funcionar no lugar de outra. São definidos pelos moralistas como "constantes em número, peso e medida". (Sb XI, 21)

Os bens fungíveis são o que hoje chamamos de bens padronizados. Com os bens estandardizados, é-me indiferente receber de volta o mesmo artigo que emprestei ou outra unidade padronizada. A propósito, a prevalência da produção em grande escala, de peças intercambiáveis e de bens estandardizados aumentaria consideravelmente o número de bens que poderiam ser objeto de um empréstimo de mutuum. Por outras palavras, nas condições industriais modernas, com muita classificação e padronização, há muito mais casos do que antigamente nos quais ficaríamos satisfeitos por receber um artigo idêntico em vez de um que emprestamos. Os livros, por exemplo, na Idade Média eram raros, caros e quase únicos; hoje, um exemplar do Almanaque Mundial é tão bom para mim como outro.

O dinheiro parece ser o mais padronizado de todos os bens e, por isso, o exemplo perfeito de um bem fungível, logo, o exemplo inevitável e perfeito do objeto de um empréstimo mutuum; pois, para todos os efeitos práticos, o dinheiro só tem valor em termos de ser gasto num futuro mais ou menos imediato. O dinheiro é o único bem cujo título de propriedade é mais seguramente transferido por ocasião de um empréstimo e, por conseguinte, um empréstimo de dinheiro sempre foi um contrato de mutuum.

As modernas moedas inflacionárias, que não têm um custo de produção significativo, levantaram alguns problemas muito desagradáveis sobre o dinheiro enquanto objeto adequado para um empréstimo ao abrigo do contrato de mutuum. O dinheiro pode ser constante em número, peso e medida, no sentido em que, quando compro um bilhete de comboio, não estou minimamente preocupado se recebo esta ou aquela nota de 5 dólares de troco. Se o dinheiro é constante em número, peso e medida ao longo do tempo, é uma questão completamente diferente. O caso do devedor americano da Hamburg-American Line que, no auge da inflação alemã, pagou 26 dólares americanos em ouro para cumprir uma dívida em marcos que originalmente representava alguns milhões de dólares, é amplamente conhecido (...).

“Apesar de um grande número de escritos confusos em várias épocas, os seguintes pontos sobre o ensinamento da Igreja sobre a usura são claros:

(1) Usura é um ganho de um empréstimo de mutuum.  
(2) A usura é intrinsecamente injusta porque é a extorsão de um pagamento sem valor equivalente prestado. 
(3) Que a usura é um pecado é formalmente definido. É condenado pela Igreja, mas a posição da Igreja era clara muito antes da condenação formal. 
(4) O empréstimo de dinheiro, considerado em si mesmo, é sempre um empréstimo de mutuum e, portanto, o ganho de um empréstimo de dinheiro é usura.

Este ensinamento pareceria simples e conclusivo em si mesmo, no entanto, desde tempos muito remotos a Igreja reconheceu que um empréstimo de dinheiro pode envolver circunstâncias que justifiquem um pagamento além do valor emprestado, mesmo que o empréstimo quando concedido considerado estritamente em si é um empréstimo de mutuum. Desde tempos remotos se reconhece como legítimo o pagamento no caso do foenus nauticum, ou seja, juros sobre projetos marítimos (...)

Este risco óbvio e extremo foi provavelmente o primeiro dos títulos extrínsecos claramente reconhecidos. Colocar seu dinheiro nesse empreendimento obviamente arriscado, dava ao credor o direito manifesto a uma compensação que não era devida a alguém que emprestasse seu dinheiro localmente e por um período de tempo definido. Esse risco obviamente impunha um custo ao credor, pelo qual ele merecia uma compensação se o empréstimo fosse feito.

Não cabe aqui detalhar a longa história do reconhecimento de outras circunstâncias extrínsecas ao empréstimo de mutuum. Sua aprovação final na prática e na teoria pela Igreja foi definida provavelmente por volta do ano 1.000 d.C., e cento e cinquenta anos depois eles foram classificados em seus aspectos positivos e negativos como "lucrum cessans" e "damnum emergens", ganho cessante e perda emergente. Esses dois têm isso em comum, eles simplesmente representam diferentes formas de um custo imposto a um credor (...).

Sempre que se verifiquem as condições exigidas, o dinheiro tem sim um valor extrínseco e, sem prejuízo do princípio de que a usura é ganho por empréstimo de mutuum, existe um título extrínseco à indenização, isto é, um título extrínseco à transação de empréstimo considerada em si. Em outras palavras, o título do ganho não é o empréstimo, mas um fato diferente também verdadeiro no momento e na ocasião do empréstimo. Coextensivo com este fato da existência das circunstâncias que criam títulos extrínsecos, a cessão de dinheiro em um empréstimo impõe um custo ao credor porque este cede esses outros valores juntamente com o valor do dinheiro considerado estritamente em si mesmo. Ele cede os valores que o dinheiro lhe teria fornecido se não tivesse sido emprestado, ou seja, (1) algum custo direto para seu próprio negócio ou pessoa, e (2) alguma oportunidade prática de ganho renunciada por falta de fundos. Qualquer um destes é um custo (...).

Chegamos, então, diretamente ao problema central: qual é o elemento usurário na inflação? O elemento de usura na inflação reside no único fato de que a inflação cria ganhos de empréstimos de dinheiro de mutuum por parte de pessoas e instituições que não pouparam e, portanto, não têm os direitos morais extrínsecos à compensação. Sempre que se empresta dinheiro que não foi previamente poupado, há um ganho de um empréstimo de mutuum para o qual não existe título moral. Sob condições inflacionárias, particularmente quando os preços estão claramente subindo – como no final das contas sempre acontece - as pessoas que recebem pagamentos de juros sobre fundos que nunca foram salvos estão recebendo algo ao qual não têm direito moral.

Embora seja obviamente verdade que as principais discussões sobre a usura dizem respeito a pagamentos na forma de juros, não há nada na definição de usura e nada na doutrina comum dos moralistas ao longo dos séculos que a limite a isso; ganho de qualquer empréstimo de mutuum é usura, independentemente da forma em que o pagamento é feito. Os moralistas clássicos dão muitos exemplos de transações usurárias que não envolvem pagamento de juros. Um exemplo seria o caso de um empréstimo pelo qual, suponhamos, excluímos qualquer título extrínseco, mas ao qual se acrescenta a condição de que o devedor encontre um emprego para o filho do credor. Esta seria, sem dúvida, uma transação usurária (...).

Contudo, a grande peculiaridade do dinheiro e do banco modernos é que novos fundos geralmente surgem por meio do processo de empréstimo. Se um governo simplesmente imprimisse papel-moeda e o distribuísse, ficaria claro que qualquer valor que o governo recebesse como resultado da primeira transação seria algo a que não tem direito, a menos que, em uma emergência violenta, isso fosse visto como exigido em uma forma muito desigual de tributação. Quando o dinheiro criado não adquire existência física de imediato, mas se torna simplesmente um saldo bancário do qual o tomador de empréstimo pode sacar, o processo é obscurecido, mas não alterado. Todos os depositantes anteriores perderam um direito contra o produto social atual que foi absorvido pelo usuário de fundos que não foram economizados nem ganhos. Quando o devedor paga o empréstimo com os fundos ganhos e economizados, alguém ganha. Quem quer que seja essa pessoa, ela tem um ganho de um empréstimo de mutuum. Ele recebeu usura.

Quando, sob condições de tempos de guerra, um governo faz uso fácil de métodos inflacionários, a escala das operações torna o elemento de usura na inflação muito grande e muito obscuro. No entanto, sua presença é claramente percebida pelas mudanças na distribuição de renda sempre associadas ao processo inflacionário mesmo quando mudanças de preços são atrasadas (B. W. Dempsey, S.J., "Cyclical Variations in Income Distribution", Econometrica, vol. XI, no. 2, April, 1943, pp. 168-169).

Do ponto de vista moral, a peculiaridade no elemento de usura na inflação é o fato de que o mutuum é um contrato vinculante na justiça comutativa e exige restituição. A difusão da injustiça sob a inflação do tempo de guerra torna muito difícil saber quem deve restituir a quem. Essa situação eu descrevi detalhadamente em outro lugar como usura institucional, um processo pelo qual os governos e o sistema bancário introduzem um elemento usurário em um contrato de empréstimo pagável nos fundos em expansão. Os poupadores que sofrem com este procedimento sofreram uma perda proveniente de um processo de empréstimo de mutuum, cuja perda eles têm o direito de ser compensados.

A usura institucional parece ser o que estava na mente de Leão XIII quando escreveu [9]: “A usura voraz veio agravar ainda mais o mal. Condenada muitas vezes pelo julgamento da Igreja, não tem deixado de ser praticada sob outra forma por homens ávidos de ganância, e de insaciável ambição.” [10] 

Conclusão

1. Considerando que a mutação monetária artificial não-emergencial pode e é costumeiramente feita pela reserva fracionária legal, 2. Considerando que a mesma mutação monetária perverte o valor real da moeda e, por conseguinte, abala o salário de algum dos serviços prestados à sociedade, e 3. Considerando que não pagar salário a quem trabalha é pecado que clama aos céus e brada a Deus por vingança, ousamos afirmar: a reserva fracionária legal, enquanto instrumento de mutação monetária artificial legal não-emergencial, é um pecado que brada aos céus e clama a Deus por vingança, e precisa ser abolida da face da terra. 

Além disso, se alguém cobra juros em cima de dinheiro que não poupou, mas foi criado, essa pessoa comete o pecado da usura, pois “não têm os direitos morais extrínsecos à compensação”, como diz o citado Pe. Dembsey. 

Muito mais se poderia prolongar, especialmente sobre a possível opressão daqueles que viviam de assistencialismo estatal, mais especificamente, os “órfãos e viúvas” (bem entendido o conceito) ocasionado um outro pecado que brada aos céus e clama a Deus por vingança: oprimir órfãos e viúvas. Porém, como isso depende de circunstâncias nacionais e específicas, para efeitos de um apanhado econômico visto pela ótica da moral católica, o presente artigo basta.

- Objeções à conclusão de que a reserva fracionária serve a um pecado de usura e, portanto, a pelo menos um dos pecados que clama aos céus e brada a Deus por vingança

Objeção 1: O Escolástico Domingo de Soto diz: “[os banqueiros têm o] costume, segundo se diz, de responder por uma quantidade maior do que a depositada caso um mercador faça o depósito em dinheiro. Entregue dez mil ao cambista; pois ele responderá por doze, talvez quinze; porque ter dinheiro vivo é muito lucrativo para o cambista. E não há nenhum mal nisso” [11]. Já o jesuíta Luis de Molina defende claramente, afinado com o Cardeal Juan de Lugo, a doutrina nova sobre o contrato de depósito monetário irregular bancário: “porque estes banqueiros, como todos os outros, são os verdadeiros donos do dinheiro que está depositado nos bancos, no que se diferenciam muito dos outros depositários [...] de modo que o recebem como empréstimo a título precário e, por conseguinte, por sua conta e risco” [12].

Resp. 1: Repara Huerta de Soto [13] como De Molina se choca com sua própria defesa, já em outro lugar (Tratado sobre los préstamos y la usura), sobre a necessidade de um juiz para declarar a duração e data da devolução do empréstimo, quando ele não tiver sido expressamente determinado: “haverá que aceitar a decisão do juiz sobre quanto tempo se poderá retê-lo.” [14] Ora, nada mais indeterminável que um depósito bancário que visava a mera custódia do dinheiro.

Objeção 2: Foram os escolásticos Domingo de Soto e, sobretudo, Luis de Molina que defenderam a nova prática. Também o Cardeal Juan de Lugo afinou com os mesmos. Embora haja oposição entre os teólogos, a maioria dos escolásticos, e inclusive os de autoridade na hierarquia católica, estavam ao lado da prática nova. 

Resp. 2: o padre Dembsey, que analisou em 1943 o pensamento dos escolásticos favoráveis àquela prática nova, diz: “Podemos concluir que um escolástico do século dezessete que visse os problemas monetários modernos apoiaria prontamente o plano de reservas de 100% ou a fixação de um limite temporal para o período de validade da moeda. Na verdade, uma oferta monetária fixa ou que só se altere de acordo com critérios objetivos e calculáveis é uma condição necessária para todo o preço justo da moeda que faça sentido.” [15]. Mesmo assim, um tema não é pacífico dentre os teólogos só porque foi majoritariamente sustentado de uma mesma forma numa época pontual (o que não é o caso). Ademais, uma posição teológica, mesmo gozando de defesas de inúmeros teólogos antigos, pode ser criticada por outros teólogos enquanto não é resolvido pelo Patriarca do Ocidente e sucessor de S. Pedro, o Bispo de Roma, seja definitivamente, seja ao longo de um tempo considerável para se tornar magistério ordinário.

Objeção 3: Saravia de la Calle, bem como outros de seu tempo, criticavam o empréstimo a juros. Logo, o argumento da tradição é anacrônico, pois aqueles teólogos raciocinavam com um mundo que hoje não existe mais.

Resp. 3: Empréstimo à juros era condenável à época por estar na maior parte dos casos desprovido de títulos extrínsecos, algo generalizado mais tarde, e com o reconhecimento da Santa Sé. Além disso, na crítica à usura a maioria dos juristas afinava.

Objeção 4: Nosso Senhor Jesus Cristo, na parábola dos talentos, deixa claro que se deve pôr o dinheiro no banco para que renda juros, e não o enterrar, como fez o servo mau (S. Mateus XV, 14-30, S. Lucas XIX, 11-27).

Resp. 4: Segundo recolhido por S. Tomás de Aquino no Catena Aurea, S. João Crisóstomo responde comentando o versículo como aparece em S. Lucas XIX, 11-27: “Nas riquezas materiais, os que devem não estão obrigados mais que a conservá-las, porque tem que entregar tanto quanto recebem, e nada mais se exige deles. Mas nas coisas divinas, não apenas temos a obrigação de preservá-las, mas somos admoestados a aumentá-las. É por isso que segue: "Para que, quando ele voltasse, o levasse com juros". No mesmo compilado, Santo Ambrósio ainda diz também: “apenas dois devolveram o dinheiro multiplicado, não certamente por causa do dinheiro, mas por causa de sua boa administração. porque uma coisa é a usura do dinheiro, e outra é a da doutrina celestial” (Catena Aurea em español, p. 973).

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[1] Moeda, Crédito Bancário e Ciclos Econômicos. Tradução de Márcia Xavier de Brito. Instituto Ludwig von Mises. São Paulo, Brasil, 2012, p. 80, nota 35
[2] Mesma obra.
[3] Saravia De La Calle, Instrucción de mercaderes, Pedro de Castro, Medina del Campo 1544, reeditado na Colección de Joyas Bibliográficas, Madri 1949. 1544, p. 180
[4] Idem, 1544, P. 197
[5] pp. 60-61, Comentario resolutorio de cambios, Consejo Superior de Investigaciones Científicas, Madri, 1965. Edição príncipe espanhola publicada por Andrés de Portonarijs, Salamanca 1556. Edição portuguesa publicada com o título de Comentario resolutorio de onzenas, Ioam de Barreyra, Coimbra 1560. Há uma edição em espanhol do livro de 2009 da New Direction | Fundación Civismo.
[6] Suma de tratos y contratos, Sevilha, 1571. Editado e introduzido por Nicolás Sánchez Albornoz, Instituto de Estudios Fiscales, Madri, 1977, vol. II, p. 480
[7] Idem, P. 109
[8] DEMPSEY, The Functional Economy: the bases of Economic Organization. Englewood Cliffs, N. J. Prentince Hall, Inc. 1958, P. 435
[9] Sobre a condição dos operários, 2. Site do Vaticano. <https://www.vatican.va/content/leo-xiii/pt/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerum-novarum.html> Acesso em 3 de dezembro de 2021, apud Dempsey, ibid, P. 437-441
[10] The Functional Economy, The Usury element in inflation, p.435-436 e 437-441.
[11] De iustitia et iure. Andreas Portonarijs, Salamanca, Livro VI, questão XI, artigo único, 1556, p. 591
[12] Tratado sobre los cambios. Instituto de Estudios Fiscales, Madrid 1991. Primeira edição: Cuenca, 1597, pp. 137-140
[13] Moeda, Crédito Bancário e Ciclos Econômicos. Tradução de Márcia Xavier de Brito. São Paulo, Instituto Ludwig von Mises. Brasil, 2012, P.101
[14] Tratado sobre los préstamos y la usura. Instituto de Estudios Fiscales, Madri 1989. Primeira edição: Cuenca, 1597, p. 13.
[15] Interest and usury, 1943, p. 210