O problema dos “tradicionalistas” Ecclesia Dei e Summorum Pontificum, ou porque quem quer ser padre tradicional não pode apoiar isso

Brasão do ICR (Inst.Cristo Rei)
Extraído de: "O Príncipe dos Cruzados" (volume II, 2a edição).

Adendo da 2a edição: o Vigário de Cristo dissolveu a Comissão Ecclesia Dei há algum tempo. Como todos os grupos de sacerdotes tradicionalistas ligados à Roma originaram dessa comissão, e os documentos citados a seguir não perderam a validade, mantivemos o artigo intacto.

Mostraremos aqui como a Ecclesia Dei (ED), comissão do Vaticano para tratar dos que “se sentem ligados à tradição litúrgica latina”, consegue fazer, com eficácia, com que os grupos ligados a ela ou vigiados por ela aceitem, de algum modo, teses estranhas ao dever do sacerdote católico, o qual, para ser católico tem que ser tradicionalista, entendido bem o que significa isso. Também mostraremos como o Summorum Pontificum de Bento XVI apoia a ED, e como seguem o mesmo espírito outras exigências do Vaticano para grupos ED, como no caso do IBP. Por fim, proporemos uma solução aos que querem ser sacerdotes tradicionais. Esse artigo está dividido em quatro partes.

Primeira Parte - Ecclesia Dei
Segunda Parte - Summorum Pontificum
Terceira Parte - IBP, FSSP e adesões estranhas
Quarta Parte - Proposta de solução para quem tem vocação sacerdotal e quer se manter em na Igreja

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-> Primeira Parte - Ecclesia Dei

1 - Premissa inicial: A ED, fundada pela Carta Apóstolica Ecclesia Dei Afflicta de João Paulo II, diz que trata dos sacerdotes definidos segundo o protocolo de 5 de Maio de 1988 e segundo a Carta Apostólica Quattuor Abhinc Annos, de 3 de Outubro de 1984

Primeiro, aqueles grupos eram constituídos por aqueles que não queriam seguir o cisma de Dom Marcel Lefebvre, já que “tal desobediência - que traz consigo uma rejeição prática do Primado romano - constitui um ato cismático”, portanto, os sacerdotes “que desejem permanecer unidos ao Sucessor de Pedro na Igreja Católica, conservando as suas tradições espirituais e litúrgicas, de acordo com o Protocolo assinado, a 5 de Maio passado pelo Cardeal Ratzinger e por Mons. Lefebvre” [1]. Esses sacerdotes estão, portanto, de acordo com o protocolo de 5 de Maio de 1988, do qual falaremos mais adiante.

Segundo, todos aqueles que “se sentem ligados à tradição litúrgica latina, mediante uma ampla e generosa aplicação das diretrizes, já há tempos emanadas pela Sé Apostólica, para o uso do Missal Romano segundo a edição típica de 1962” [2]. Nessa frase a Carta Apostólica cita uma nota que indica a Carta Apostólica Quattuor Abhinc Annos, de 3 de Outubro de 1984. Esses últimos estão sujeitos a esta Carta.

2 - O protocolo de 5 de Maio de 1988, assinado pelo Cardeal Ratzinger e por Mons. Lefebvre, não pode ser aceito por um católico tradicionalista

O que diz esse protocolo?

"Eu, Marcel Lefebvre, arcebispo emérito de Tulle, junto com os membros da Sociedade Sacerdotal de São Pio X, que fundei:

Em quanto a certos pontos ensinados pelo Concílio Vaticano II, sobre as posteriores reformas da liturgia e das leis que parecem difíceis de conciliar com a tradição, nos comprometemos a uma atitude positiva de estudo e de comunicação com a Sé Apostólica, evitando toda polêmica”.

"Evitar toda polêmica", além de ser extremamente genérico, é anti-pastoral, principalmente quando há algo grave afetando o rebanho.

“Declaramos, ademais, que vamos reconhecer a validez do sacrifício da Missa e dos sacramentos celebrados com a intenção de fazer o que faz a Igreja e de acordo com os ritos nas edições típicas do missal e os rituais dos sacramentos, promulgada pelos Papas Paulo VI e João Paulo II”.

Separa-se validez do sacrifício da missa e do sacramento, ou seja, não só o sacramento é válido (o que só sedevacantista discorda), mas a assistência à missa (o que depende).

“Por último, nos comprometemos a respeitar a disciplina comum da Igreja e as leis eclesiásticas, particularmente as contidas no Código de Direito Canônico promulgado pelo Papa João Paulo II (...)” " [3].

Respeitar as leis eclesiásticas e "disciplina" do CDC de João Paulo II não seria ruim se algumas não fossem censuráveis, como a que fala que se pode dar comunhão a um a-católico (Cân.844, § 2). Entretanto, rejeitá-las não é desrespeito à lei ou disciplina porque tal cânone censurável nem sequer pode ser considerado disciplina ou lei.

Conta um site lefebvrista (ramo Dom Williamson) que por mais que o Bispo francês tenha de fato assinado, aos poucos foi se distanciando deste, primeiro porque se sentia velho, e queria logo sagrar um sucessor antes de partir. Um tempo após ter sagrado esse sucessor mais outros três, o sempre confuso Bispo admitiu estar enganado em rechaçar o protocolo somente por causa da data estabelecida, 15 de agosto, invés de final de Junho como queria antes:

“Alguns acordistas sustentam que o Mons. Lefebvre se arrependeu do acordo de 3 de maio de 1988 por causa que a data para consagrar um bispo se retardava. É verdade que a princípio, em junho de 1988, foi o que o Mons. Lefebvre deu a entender. Mas suas ideias se aclararam mais tarde: 

Mons. Lefebvre: “Nossos verdadeiros fiéis, aqueles que compreenderam o problema e que nos ajudaram a continuar a linha reta e firme da Tradição e da Fé, temiam as negociações que eu fazia em Roma. Eles me disseram que era perigoso e que perdia meu tempo. Sim, é claro, eu esperei até o último minuto para que em Roma demonstrassem um pouco de lealdade. Não me podem acusar de não ter feito o máximo. Também agora, aos que dizem “você devia se entender com Roma”, eu creio lhes poder dizer que fui mais longe do que devia ter ido” [4].

Portanto, a existência de gente submissa ao ED e ao mesmo tempo admiradora do bispo francês cismático é mais uma prova da contradição em que vivem, já que o próprio Bispo condenou as bases em que se fundam todos os grupos ED.

3 - A Carta Apostólica Quattuor Abhinc Annos, de 3 de Outubro de 1984, não pode ser aplicada por um católico tradicionalista, já que a carta se endereça àqueles que não possuem tal posição

No Motu proprio "Ecclesia Dei afflicta" de 2 de julho de 1988, publicado na manhã seguinte à excomunhão automática de Dom Lefebvre confirmada por João Paulo II, pode-se ler:

"Nas presentes circunstâncias, desejo sobretudo dirigir um apelo, ao mesmo tempo solene e comovido, paterno e fraterno, a todos aqueles que até agora, de diversos modos, estiveram ligados ao movimento do Arcebispo Lefebvre (...) e de não continuarem a apoiar de modo algum esse movimento (...). Deverá ser respeitado o espírito de todos aqueles que se sentem ligados à tradição litúrgica latina, mediante uma ampla e generosa aplicação das diretrizes, já há tempos emanadas pela Sé Apostólica, para o uso do Missal Romano segundo a edição típica de 1962″.

E o fim desta frase remete a uma nota de rodapé: "cf. Congregação para o Culto divino. Carta Quattuor abhinc annos, 3-x-1984 (...)". Ora, esta Carta é uma carta que deu um "indulto especial", "concedendo" a celebração da missa antiga aos padres e fiéis que “não têm nada a ver com aqueles que questionam a legitimidade e a retidão doutrinal do Missal romano promulgado pelo papa Paulo VI“. 

Portanto, os padres e grupos de padres que assinam algum documento concordando com essas diretrizes concordam que não são “aqueles que questionam a legitimidade e a retidão doutrinal do Missal romano promulgado pelo papa Paulo VI“.

-> Segunda Parte - Summorum Pontificum

No Motu próprio Summorum Pontificum de 7 de julho de 2007 [5], Bento XVI reconhece que a Carta antes citada foi um "indulto" para se celebrar a missa tradicional dita de São Pio V, e no mesmo lugar, admite que a missa "nunca foi ab-rogada", mas fala desse indulto de celebrar a missa segundo o missal de 1962. Outro problema é que o Motu Proprio chama o Rito de São Pio V de uso extraordinário do único rito romano, o que é equivocado, dado a disparidade dos dois Ritos. Por fim, pode-se ler no artigo 11: "Que a Pontifícia Comissão Ecclesia Dei, ereta em 1988 por João Paulo II, siga levando adiante sua função”. Ou seja, as mesmas diretrizes e aplicações anteriores ainda valem.

Novos santos: na instrução da ED sobre a aplicação do Motu Proprio [6], aprovada pelo mesmo Papa, fatos saltam aos olhos tradicionalistas: "25. No Missal de 1962 poderão e deverão inserir-se novos santos e alguns dos novos prefácios, segundo as diretrizes que ainda hão de ser indicadas", e em outro lugar: "27. No que diz respeito às normas disciplinares conexas à celebração, aplica-se a disciplina eclesiástica contida no Código de Direito Canônico de 1983", a qual não seria ruim, como dissemos, se não tocasse na questão de dar comunhão à a-católicos, etc.

Dito isso, é estranho ao tradicionalismo aceitar tal documento como bom, ou formar um grupo ali enraizado.

-> Terceira Parte - IBP, FSSP e adesões estranhas

IBP 

Lemos no próprio site do IBP francês algo dito no Comunicado dos sacerdotes de 9 de setembro de 2006 [7]:

"Do ponto de vista doutrinal, conforme ao discurso do Papa Bento XVI à Cúria Romana no dia 22 de dezembro de 2005, os membros do Instituto, enquanto pertencem à ele, estão comprometidos por uma "crítica séria e construtiva" do Concílio Vaticano II, para permitir à Sé Apostólica de dá-lo a interpretação autêntica" [8].

Além de ser cheque em branco para considerar válida qualquer interpretação heterodoxa do Vaticano sobre o Concílio, a referida citação, de Bento XVI, fala assim dos problemas relativos ao Concílio e sua aceitação: "tudo depende da justa interpretação". Como sanar o que há de equivocado em um documento via hermenêutica? A interpretação do ruim não o faz bom.

Ademais, o então superior geral do IBP fala que também foi assinada uma ata de adesão que se referia a "evitar toda polêmica" [9], igual ao protocolo de Maio do qual falamos anteriormente. Ademais, em alguns sites ligados ao IBP, fala-se de "forma extraordinária", e no Brasil se comemora o aniversário do Motu Proprio Summorum Pontificum [10].

FSSP

As atas da fundação da FSSP citam explicitamente o protocolo de 5 de Maio de 1988: “Por este ato, os clérigos subscritos fundam a Fraternidade Sacerdotal São Pedro (...) tendo em conta a isenção prevista no protocolo de 5 de maio de 1988 e do Motu Proprio "Ecclesia Dei adflicta" de 2 de julho de 1988” [11].

ICR (Instituto Cristo Rei)

Seu site já chama o Rito Tradicional de forma extraordinária e diz que usa o Rito litúrgico segundo o Summorum Pontificum [12].

Outros erros

Outros tantos erros poderiam ser encontrados nos diversos grupos, mas sem objetivo de analisá-los todos, ressalte-se o mais visível: a admiração ao bispo cismático D. Lefebvre.

-> Quarta Parte - Proposta de solução para quem tem vocação sacerdotal e quer se manter na Igreja

Basta não entrar em nenhum movimento ED, nenhum grupo ligado ou que queira ser ligado ao ED. Embora padres tradicionalistas sejam geridos pela comissão ED ou similares, isto é diferente de assinar algo dizendo-se estar entre os que os documentos da ED se refere, ou concordando com algo heterodoxo. Fazê-lo é o mesmo que se dizer não tradicionalista. Além disso, é preciso ter atenção com documentos que podem ser apresentados de tempos em tempos tentando criar esse problema de consciência. 

É espantoso como as pessoas reconhecem a crise na Igreja e progressismo, mas acreditam na boa vontade dos principais atores desta crise, e se colocam em grupos que são os mais visados por eles para sofrerem sanções ou serem postos em problemas desse gênero. Afinal, seriam muitos coelhos em uma cajadada só.

Dito isso, o vocacionado ao sacerdócio tradicionalista também perceberá que o melhor a fazer é formar-se em filosofia e teologia, e só depois apresentar para algum bispo o desejo de ser padre, já possuindo formação, e negociar o que mais é preciso, tendo em vista as precauções acima. Assim, evita-se logo qualquer contato com seminário, o qual, se não é progressista, é visado e exposto a esses mesmos problemas. Além disso tudo, o caminho de desvinculação de grupos e negócio direto com bispo era o qual Plinio Corrêa de Oliveira via com bons olhos, a julgar pelo caminho dos padres tradicionalistas mais próximos deste e fiéis ao Rito de S. Pio V e doutrina tradicional da Igreja.

Assim, se por um lado aqueles que querem ser tradicionalistas gastam muito dinheiro, viajam à Europa e lugares distantes, se colocam em uma situação de "ter chegado até ali", ficando dóceis para aceitar um documento qualquer ou uma pressão qualquer que os poderia enviar de volta, e já estão definidos por estes documentos pela pertença ao seminário ou grupo, por outro lado o tradicionalista contra-revolucionário tem perto de si a opção de começar seu caminho para o sacerdócio, consegue por bem menos dinheiro, e ainda pode tratar com diversos bispos um lugar melhor e mais livre de perseguições, propício ao seu apostolado, enquanto o outro talvez tenha seu destino definido por superiores refratários à tradição que limitam a ação desses grupos, impedindo a eficácia pastoral.

Por fim, o vocacionado deve ter em mente que se Deus deixou que o Pe. Pio fosse suspenso de ordem e mandado de volta para a cela, impedindo-o de exercer seu ministério sacerdotal inteiramente, o mesmo pode acontecer com um vocacionado qualquer, que sofrendo por isso, e oferecendo em reparação pelos pecados que se cometem no mundo, agradará tanto a Nossa Senhora, que talvez salvará as almas que esse vocacionado almejava. Além disso, terá dado exemplo de obediência, tal como Pe. Pio que possuía as estigmas de Cristo, fruto da obediência sacrificadora a Deus Pai.

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[1] Carta Apostólica Ecclesia Dei Afflicta, 2 de Julho de 1988, João Paulo II, 3 e 6-a. Link: http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_commissions/ecclsdei/documents/hf_jp-ii_motu-proprio_02071988_ecclesia-dei_po.html
[2] Idem. 6-c 
[3] Link (original em francês): https://www.fssp.org/fr/protoc5mai.htm
[4] Fideliter n° 79, pág.11. Link: http://nonpossumus-vcr.blogspot.cl/2013/08/la-verdad-sobre-monsenor-lefebvre-sale.html, o qual traduz de outro site da mesma linha em francês: http://aveclimmaculee.blogspot.mx/2013/08/la-verite-sur-mgr-lefebvre-sort-de-la.html
[5] Link: http://w2.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/motu_proprio/documents/hf_ben-xvi_motu-proprio_20070707_summorum-pontificum.html 
[6] Instrução sobre a aplicação da Carta Apostólica Motu Proprio Summoum Pontificum, 30 de abril de 2011. Link: http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_commissions/ecclsdei/documents/rc_com_ecclsdei_doc_20110430_istr-universae-ecclesiae_po.html#_ftnref9
[7] Link: http://lacriseintegriste.typepad.fr/weblog/2006/09/communiqu%C3%A9-des-pr%C3%AAtres-de-linstitut-du-bonpasteur.html 
[8] Link: http://www.institutdubonpasteur.org/fr/content/historique-de-linstitut-du-bon-pasteur
[9] Link: https://blog.institutdubonpasteur.org/Acte-d-Adhesion
[10] "Tivemos a alegria de sua presença também na Festa de São Pio V, para comemorar os 10 anos do Motu Proprio Summorum Pontificum". Link: https://missatridentinaembrasilia.org/2018/01/08/sermao-retrospectiva-2017/
[11] Original em francês do site da FSSP: https://www.fssp.org/fr/actfond.htm
[12] Link: http://icrspfrance.fr/linstitut/qui-sommes-nous/