É válida a consagração pela anáfora de Addai e Mari usada no rito Católico Caldeu e Malabar? Resposta por documentos da Tradição Católica

S. Tadeu de Edessa,
rogai por nós!
Extraído de: "O Príncipe dos Cruzados" (Volume II, 2a edição).

Antes, é preciso saber se certas palavras são indispensáveis para efetuar a transubstanciação, e quais são:

A forma da Eucaristia é só "isto é o meu corpo"/"este é o meu sangue"? Análise pelas liturgias tradicionais, Papas, Santos e teólogos

Histórico do problema

Sabe-se que uma das anáforas usadas na liturgia dos Católicos Caldeus (oriundos na maior parte do Iraque) e dos Malabares (indianos), é a de Addai e Mari (ou anáfora dos Apóstolos), considerados discípulos de S. Tomé. Addai é mais conhecido como São Tadeu de Edessa e, segundo Eusébio de Cesaréia, foi enviado por S. Tomé para curar um Rei em Edessa, e depois converteu aquele povo. Já São Mari foi discípulo de São Addai. S. Tadeu ou S. Addai também é considerado uns dos 72 apóstolos enviados por Nosso Senhor no Evangelho.

Usada pelos católicos acima referidos, mas expurgada de toda tendência nestoriana que houve naquelas regiões, esta anáfora não é relacionada a um documento histórico primário com as palavras da instituição: "isto é o meu corpo...este é cálice do meu sangue...". A 'Catholic Encyclopedia' cita algumas hipóteses de autores em vista desta ausência: por erro de copistas ao longo dos tempos ajudado pela ignorância, ou a pura ignorância, ou as palavras nunca estiveram lá, pois eram sagradas demais para serem escritas. 

Em 2001, o Papa João Paulo II aprovou a validez da missa com a Anáfora de Addai e Mari sem as palavras da instituição, referindo-se principalmente à missa dos Assírios (cismáticos e nestorianos do Oriente), como relata o Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, quando era dirigido pelo Cardeal Walter Kasper:

"A principal questão para a Igreja católica, no que diz respeito à aceitação deste pedido, estava relacionada ao problema da validade da Eucaristia celebrada com a Anáfora de Addai e Mari, uma das três Anáforas tradicionalmente usadas na Igreja Assíria do Oriente. A Anáfora de Addai e Mari é célebre porque, desde tempos imemoráveis, foi sempre usada sem a recitação da chamada Narração da Instituição. Dado que a Igreja católica considera as palavras da Instituição eucarística uma parte constitutiva e, portanto, indispensável da Anáfora, ou Oração Eucarística, empreendeu-se um prolongado e atento estudo da Anáfora de Addai e Mari, a partir dos pontos de vista histórico, litúrgico e teológico, no final do qual a Congregação para a Doutrina da Fé concluiu, a 17 de Janeiro de 2001, que esta Anáfora podia considerar-se válida. E Sua Santidade o Papa João Paulo II aprovou esta decisão" [1].

Validade da anáfora sem as palavras da Instituição

De fato a missa caldaica usa de uma das mais antigas anáforas. Por causa disso, uma de suas anáforas, a de Addai e Mari, sem as palavras da instituição, valida o sacramento da Eucaristia para esta missa? Como vimos em artigo anterior, não valida porque nem na anáfora, nem em outro lugar, vê-se as palavras necessárias para que, "in persona christi", o sacerdote efetue a consagração do pão e do vinho, transformando-os, respectivamente, no corpo e sangue preciosíssimos de Nosso Senhor Jesus Cristo. Esta posição foi defendida inclusive pelo teólogo Mons. Brunero Gherardini.

Refutação de objeções e afirmações relacionadas com a defesa da validade da anáfora sem as palavras da instituição

Neste caso, não se disputa se as palavras da instituição foram passadas oralmente (secretamente ou não), ou se elas estavam lá no início e foram por qualquer razão retiradas. Somente convém dissipar algumas falsas afirmações relacionadas com a posição equivocada de tentar justificar a resolução aprovada por João Paulo II que se choca com a doutrina católica desde as Escrituras até os Doutores da Igreja mais respeitados e venerados:

Objeção 1: nos primeiros séculos, antes dos Padres do Concílio de Nicéia, não houve, nas descrições das missas, nenhum indício de que o sacerdote proferia as palavras da última ceia exatamente com as palavras de Nosso Senhor, prova de que não era da tradição. Assim, quem diz que é indispensável haver fórmula para haver sacramento, sustenta que pelos primeiros séculos não houve missa com sacramento válido.

A ausência de documento escrito sobre a liturgia não é uma prova de que nunca o houve. Nenhum dos relatos antigos continha ou pretendia conter uma descrição exaustiva da liturgia, tanto por causa da necessidade de guardar esse mistério, tanto por causa das perseguições. Sabe-se que a tradição foi inicialmente mais oral do que escrita.

Além disso, fora o fato dessa alegação ser desmentida pelo mais antigo e mais importante documento da Igreja, a Bíblia, especificamente na Carta de São Paulo aos Coríntios (I Cor XI, 2), é também desmentido pela história em documento do ano 220. Conta o historiador Theodor Klauser:

"Mas foi nos anos 1910 e 1916, respectivamente, que o filólogo alemão Edward Schwartz e o Monge beneditino inglês Dom Hugh Connolly chegaram a conclusão que o documento até então conhecido como "Ordem da Igreja Egípcia" tinha um livro mais antigo da Cidade de Roma que o Sacramentario Leonino mencionado e que este livro era nada mais nada menos do que o manual com o qual Hipólito, o Antipapa romano que depois morreu nas minas de Sardinia, compilou no 220 A.C. com o título de "Tradição Apostólica". Era conhecido há muito tempo que Hipólito tinha escrito tal trabalho. Em 1551 uma estátua de mármore desse homem notável foi descoberta, a qual representa ele sentado em cadeira de professor, na qual no lado direito se lê uma lista de seus escritos. A lista inclui um livro com o título, em grego, de "Tradição Apostólica", o qual foi agora identificado e restaurado para nós (...).

Pode-se objetar que talvez Hipólito, a cabeça de uma comunidade cismática, não incorporou em seu livro as práticas tradicionais de Roma, mas nos deu uma inteira nova ordem feita por ele mesmo ou até mesmo (como J. M. Hanssens sugeriu) alguma importada de Alexandria. Mas esta objeção não aborda o fato de que, em sua luta com o Papa Calisto, Hipólito era o que defendia a tradição, o porta-voz autêntico dos círculos conservadores em Roma. Mais ainda, pouco depois de sua composição, o tratado de Hipólito esteve em uso por vários séculos nas mais vastas províncias separadas da Igreja, não só no Ocidente, mas predominantemente no Oriente, tanto na forma original, quanto em tradução, ou na forma de alguma adaptação em vários graus de proximidade com o original. Tudo isso são provas de que era ele considerado uma coleção de regras litúrgicas inteiramente ortodoxa e consonante com a tradição" [2].

Vale lembrar um detalhe: Hipólito, apesar de ter sido Antipapa, é considerado mártir e santo da Igreja Católica, pois a tradição considera sua reconciliação com o Pontífice Romano da época antes de serem martirizado juntos nas minas de Sardinia.

Ainda que repugne o senso de fé na Tradição acreditar que não havia a fórmula da consagração desde o início, sustentar que por alguns séculos não houve missa é bem menos pior do que alegar que todos os Padres da Igreja, tanto os daqueles primeiros séculos, como S. Ambrósio, até os Doutores da Igreja, Concílios e inúmeros Papas, compilados no artigo precedente, erraram de modo crasso. Afinal, uma posição nega três séculos de tradição católica em determinado local, e os que acreditam que não há fórmula para a Eucaristia negam TODA A TRADIÇÃO CATÓLICA.

Objeção 2: como diz o Pontifício Conselho para a Unidade dos Cristãos: "É necessário ajuntar que, em relação ao período do Patriarcado Católico sob a direção do Patriarca Sulaka (1551-1662), não existe documento algum atestando que a Igreja de Roma havia insistido na introdução da narração da Instituição na Anáfora de Addai e Mari".

Isto é falso. 

Um manuscrito do século XVI (Vat. Syr. 66) contendo a anáfora de Addai e Mari (fos. 104-107) tem a narrativa com as palavras da instituição inseridas em um folio suplementar (101), provavelmente adicionado a um pontifical pré-existente por Mar Joseph Sulaka, cujo irmão Mar John Simon foi eleito rival ‘catholicos’ em oposição ao ‘catholicosate’ hereditário. Em 1553, o Papa Júlio III na bula Divina Disponente Clementia, consagrou Mar John Simon Patriarca. O ponto alto desta controvérsia foi a criação da Igreja Católica Caldaica e a afirmação lógica disso seria que a adição da Instituição da Narrativa no seu manuscrito fosse uma condição sine qua non para a união com Roma [3].

O Sínodo de Diamper (1599) também deixa claro que o Arcebispo de Goa retirou as palavras desnecessárias e erros da liturgia siríaca em língua caldaica, principalmente na forma da consagração, e acrescentou as usadas pela Igreja Católica Romana. Em 1600, a bula “in supremo militantes Eclesiae” do Papa Clemente VIII, elevou o Bispado de Angamale à arcebispado, o que já demonstra a gratidão da Santa Sé pelos trabalhos do Bispo, principalmente no sínodo, o qual se reteve em reformular principalmente o rito caldeu usada naquela região.

Conforme texto editado do português arcaico das atas do Sínodo em 1606:


“Entre as coisas que o Reverendíssimo Arcebispo de Goa Primaz da Índia Dom Frey Aleixo de Menezes pôs em ordem no Sínodo Diocesano que celebrou no Bispado de Angamalle das Serras do Malauar dos Cristãos de São Tomé, em que se purgou aquela Cristandade das heresias de Nestos, e se deu obediência à Santa Igreja Romana foi uma das mais principais a limpar a Missa Síriaca, ou Siriana, que em língua Caldaica se dizia neste Bispado, a qual, como era feita ou acrescentada por hereges Nestorianos, continha muitos erros e blasfêmias assim em algumas orações como em fazer comemoração nela de Nestor, Theodoro, e Deodoro e outros muitos hereges Nestorianos com título de Santos a quem pedia que orassem e intercedessem por nós, e como estes povos estavam em suma ignorância, e ainda os Bispos que lhe vinham de Babilônia Caldeos eram ignorantes, até na forma da consagração punha cada um ou tirava o que queria, e assim não haviam antigamente certa forma particular com que consagrarem, até que vindo um Arcebispo que tinha alguma luz das coisas Eclesiásticas, e das divinas escrituras, e vendo que na forma com que consagravam tinham alguns erros contra a verdade do divino sacramento, lhe pôs a verdadeira forma acrescentando algumas palavras, na consagração do corpo de Cristo Nosso Senhor, e na do sangue acrescentou em ambas para encontrar o erro e heresia dos que diziam que era figura do corpo de Cristo, donde parece que os malditos hereges de nosso tempo, ressuscitando todos os erros de todas as seitas antigas e condenadas o tomaram, e assim lhe pôs este Arcebispo na forma:

hoc est in veritate corpus meu, hic est in veritate cálix sanguinis mei, qui pro vobis, & pro multis effundetur in debitorum propiationem, & in peccatorum remissionem, & hoc erit vobis pignus in secula seculorum, 

& nesta forma consagraram de muitos anos até agora, mas o Reverendíssimo Arcebispo Primaz tirou as palavras desnecessárias, e pôs a própria forma de que usa a Igreja Católica como está no Missal Romano, e assim tirou muitas cerimônias sacrílegas e ignorantes com que significaram algumas heresias e ignorâncias que entre si tinham, e reformou a missa de todas elas, deixando o mais na forma antiga até se consultar a Sé Apostólica (...)” [4]. 

Prova de que pelo menos no século XIX as palavras da instituição já eram empregadas é o texto desta liturgia, como relata a "Catholic Encyclopedia" em artigo de 1886 [5].

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[1] "Diretrizes para a admissão à Eucaristia entre a Igreja Caldeia e a Igreja Assíria do Oriente", de 20 de Julho de 2001. Link: http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/chrstuni/documents/rc_pc_chrstuni_doc_20011025_chiesa-caldea-assira_po.html
[2] "A Short History of Western Liturgy", Cap.I, Item ii.
[3] Uwe Michael Lang, 'Eucharist without Institution Narrative ?
[4] Coimbra: Officina de Diogo Gomez Loureyro, impressor da Universidade, 1606. 124 p.
[5] Translated by James Donaldson. From Ante-Nicene Fathers, Vol. 7. Edited by Alexander Roberts, James Donaldson, and A. Cleveland Coxe. (Buffalo, NY: Christian Literature Publishing Co., 1886.) Revised and edited for New Advent by Kevin Knight. <http://www.newadvent.org/fathers/0719.htm>.